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Das arquibancadas vazias aos atendimentos on-line

Provavelmente aqueles que assistiram a alguma competição das Olimpíadas 2020/21 estranharam as imagens das arenas vazias em Tóquio. Tanto para os mais aficionados por jogos quanto para os menos entusiastas dos esportes, esse vazio me pareceu inesquecível.



O entusiasmo da plateia nos afeta mesmo pela televisão, não por menos filmam-se as reações nas arquibancadas. E claro, também sabemos que nada se iguala ao efeito da presença no local. Sentimos prazer ao pensar ou dizer, “eu estou aqui” ou “eu fui”, mas algo que se produz apenas naquele momento é intransmissível ao relato.


Hans Ulrich Gumbrecht, professor de literatura na Stanford University, em seu livro “Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir” define metafísica como a “atitude, quer cotidiana, quer acadêmica, que atribui ao sentido dos fenômenos um valor mais elevado que à sua presença material”. A centralidade da interpretação se dá ao produzirmos um sentido, um pensamento, como modo de nos apropriarmos de uma experiência, em detrimento da percepção como fonte de conhecimento, leva Gumbrecht a abordar os fenômenos a partir, não da produção de sentido, mas da produção de presença. Algo fora do binômio sujeito-objeto, em que, na posição de sujeito, produz-se um sentido sobre um objeto observável. Me explico: Gumbrecht constrói seu argumento para colocar em perspectiva a ênfase dada pelas ciências humanas na produção do conhecimento pelo sentido e seu embasamento dialoga com nossa posição no mundo. Ele mostra que no período histórico de transição da idade média para a modernidade, o homem que era visto como parte das coisas do mundo, não separado dele, a partir de um deus criador. E na modernidade passa à posição desse que observa o mundo e produz um conhecimento sobre a materialidade que precisa ser desvelado através do pensamento. Com a passagem dos séculos fomos intensificando a produção de conhecimento, dando sentido aos fenômenos, uma produção de sentido. Nos distanciamos da experiência que produz um outro tipo de conhecimento, através da presença que não passa pelo sentido que possa ser atribuído aos fenômenos. Ele busca demonstrar sua tese sobre a produção de presença com experiências contemporâneas, dentre outras, os eventos esportivos.


Por isso, as Olimpíadas aqui nos interessam, em especial, pela maneira como ele apresenta a produção de presença pela via desse fenômeno no contexto estético. Gumbrecht recorre às artes e aos esportes para abordar o fascínio, que ocorre de modo epifânico, no momento efêmero da presença junto com a consciência da singularidade do evento, tornando-o incomparável. Entendo que se trata daquele momento em que a bola faz um trajeto inesperado para o gol, dos desafios à gravidade nas enterradas do basquete, das piruetas e aterrisagens perfeitas das ginastas etc. Antes de darmos algum sentido ao ocorrido, percebemos o momento boquiabertos, por vezes, alguns pronunciam, “Uau!” De modo que o espectador e atleta (no caso) entram em uma espécie de sintonia, que os faz escapar do mundo saturado de sentido e de cultura, para entrar em contato com o que ele chama de produção de presença.


A psicanálise nasce como uma cura pela palavra e isso não se trata apenas da produção de sentido pela fala. Buscamos explicar-nos dando sentido às nossas vivências ao falarmos de nós, mas momentos de espanto derivados de uma experiência do tropeço inusitado da linguagem, por exemplo, que aparentemente surge sem sentido (arrisco-me, aqui não se trata mais da pesquisa de Gumbrecht), teria também esse efeito efêmero, singular e incomparável destacado na produção de presença. Experiência que se pode produzir nos atendimentos presenciais, nos realizados on-line ou até mesmo em nenhum deles. Dependendo, me parece, mais importante a disposição do analista que possa se surpreender, não pela teoria que venha a se confirmar em sua escuta, mas pelo inesperado que suspende por um instante o enredo carregado de sentido e surpreenda analista e paciente. Produzir ou descobrir novos sentidos em uma análise faz parte do tratamento assim como poder experimentar momentos em que o silêncio e o espanto possam ser vividos e testemunhados como parte desse processo. Um breve momento em que percebemos o acontecimento, que antecede a busca por darmos sentido ao ocorrido, ou apenas que produza presença.



Curioso que ao aproximar as competições olímpicas e a análise, me dou conta de que a produção de presença que Gumbrecht exemplifica com determinados momentos dos espetáculos esportivos me pareça coincidir com aquilo que, em uma análise, chamamos de ato falho. Falho para a consciência, porém bem-sucedido para a experiência de uma análise que envolve não apenas a fala, mas também a presença material nos consultórios ou pelos mais diversos espaços onde estão sendo experimentados os atendimentos on-line. Uma análise não ocorre apenas pela produção de um conhecimento sobre si através do pensamento, mas também pela experiência de um corpo no mundo que pode se dar, seja próximo aos analistas em seus consultórios ou em atendimentos remotos.


Gustavo Florêncio Fernandes

Psicanalista, membro do TRIEP



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