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A covardia como método

Há uma discussão atual sobre estarmos vivendo em um período da pós-verdade, em que os fatos não importam muito, mas como cada um de nós os registra e os compreende a tal ponto de produzirem-se narrativas específicas a cada grupo social. Seria como se cada pessoa ou grupo vivesse em uma realidade muito distante das demais.





Agora imaginem esta produção de realidades distintas levada ao máximo quando a mesma pessoa se posiciona de maneira contraditória, não em uma revisão de seus pensamentos anteriores, mas afirmando nunca ter dito o que de fato dissera. O que há é uma tentativa de apagamento do primeiro discurso que passa a não ser reconhecido como tal. O mais incrível é não haver nenhum tipo de constrangimento deste sujeito, possivelmente por acreditar não precisar se responsabilizar pela mudança de seu discurso, fingindo ser este último o que de fato sempre estivera em causa e não o que fora proferido anteriormente.


É uma situação que poderia causar estranheza para todos aqueles que entendem que qualquer história necessita de um mínimo de coerência: partindo de um passado que se liga ao presente, conferindo-se a este certo sentido, para assim lançar-se em perspectivas futuras, mesmo que possam ser modificadas. Ou seja, toda modificação necessita de reconhecimento do já ocorrido, caso contrário estaríamos diante de atitudes deliberadas de alguém querendo reescrever a história sem se colocar como pessoa envolvida e, consequentemente, sem estar no lugar de agente de seu próprio discurso.


Qual o propósito desta atitude de não se implicar em sua própria narrativa?


Temos uma covardia com vestes de poder, no sentido de uma autorização que os sujeitos imputam-se a si mesmos ao modificar as suas narrativas a seu bel-prazer, tentando fazer o outro crer em cada discurso desconexo que possa vir a ter, sem a menor necessidade de coerência mínima entre eles.


É este caso que penso se tratar de um emprego da covardia como método, porque é provocada por alguém que responderia propositadamente do lugar de vítima, ao dizer algo do tipo: “eu nunca disse isso!” quando chamado a arcar com o que dissera; lugar este do qual se esquiva, transformando-se em acusador permanente de supostas conspirações. Dessa forma, responsabilizaria sempre o outro por aquilo que deveria tomar-se como autor dos próprios atos.


Seria este um exemplo que se aproximaria do discurso cínico, tal como entendo que o psicanalista Ricardo Goldenberg o conceitua no seu livro intitulado “No círculo cínico, ou, Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas?”, importante para nos ajudar a pensar em certas construções discursivas. Esta maneira cínica de se posicionar seria dada por alguém capaz de fazer uso da linguagem com vistas à manipulação dos outros, desacreditando na verdade daquilo que diz; e no caso em questão, desconsiderando a lógica de suas falas por operar a partir da dissimulação do que foi dito e de um suposto eu onipotente e controlador, acima da lei.


Talvez sejam justamente estes os fatores citados acima que capturam outros sujeitos a se identificarem com tal posicionamento a ponto de sustentarem um lugar que possa ser ocupado por um líder escolhido como porta-voz dessas reivindicações ligadas à desresponsabilização e a consequente tentativa de fuga covarde, por poder realizar em suas falas aquilo que muitas vezes seus súditos gostariam de fazer.



Contrariamente a esta atitude cínica, a psicanálise nos convoca a pensar sobre os nossos posicionamentos para que possamos nos interrogar sobre a nossa parte naquilo que queixamos. Tal é a postura ética necessária toda vez que queremos responder por aquilo que somos afetados.


Assim, tomar a palavra é, antes de tudo, reconhecer-se como parte integrante da própria história, parando de delegar ao outro a responsabilidade daquilo que nos afeta, arcando com o preço desta autorização. Assim, autorizar-se é responsabilizar-se pela direção tomada, tornando-se autor da própria história, mesmo que não seja desde o posto de comando daquilo que gostaríamos ter como resultado, já que não há escolha perfeita, e sim escolha possível.


Fabiana Sampaio Pellicciari

psicanalista membro do TRIEP

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