Com o avanço da pandemia, temos nos perguntado cada vez mais sobre a extensão de seus efeitos na subjetividade e de seus impactos na esfera coletiva. E talvez possamos pensar também os efeitos dela em relação à psicanálise, mais precisamente às suas interferências na escuta analítica, ideia que me remete a uma definição que a psicanalista argentina Janine Puget apresenta ao falar de um momento específico, no qual analista e analisando vivenciam uma experiência intensa comum e esta é compartilhada no processo analítico.
Puget denomina esta experiência de “mundo sobreposto”. Segundo ela, esse fenômeno pode ser verificado quando, no decorrer das sessões, “a maioria dos pacientes em seu discurso manifesto, apresenta um excesso de fatos, dados e problemas que pertencem à realidade externa atual e a um mundo conhecido por todos. Essa presença constante, tanto em nossos consultórios, no enquadre analítico, na livre associação, na atenção flutuante, na transferência-contratransferência e na troca com os colegas, remetem a questões que representam uma ‘condição de exceção’” trazendo dificuldades à técnica. Para Puget, “o mundo sobreposto é um momento de eclipse analítico."
A partir desta afirmação, podemos pensar o quanto nós, enquanto analistas, vivenciamos esta espécie de eclipse que pode se anunciar em nossa escuta, quando nos vemos também atravessados por vivências tão intensas e deste excesso de realidade que temos compartilhado. Quais seriam os impactos disso na sessão analítica?
O analista, que durante a análise está ali como função, acaba, em alguns momentos, correndo o risco de levar “sua pessoa” para a sessão. Em condições "normais" de trabalho, ele não se encontra identificado com seu paciente, é capaz de manter a escuta de sua subjetividade, garantindo a presença de elementos que fazem com que a análise possa acontecer (atenção flutuante, interpretação, análise da transferência-contratransferência, manejo da técnica, pensamento clínico...), utilizando seus recursos psíquicos e teóricos no decorrer do processo. Sua pessoa fica em reserva, em suspensão no decorrer de seu trabalho durante a sessão, e a sua escuta o possibilita manter o enquadre e o funcionamento do processo analítico. No entanto, em “condição de exceção” sua função pode se apresentar afetada, eclipsando seu trabalho em análise.
Acompanhando o pensamento de Janine Puget sobre o “mundo sobreposto”, podemos dizer que a partir desta experiência compartilhada com seu analisando, o analista também se percebe atravessado por sua vulnerabilidade, se vendo também afetado. E os efeitos desta vivência podem se apresentar a ele como excessos de silêncio, dificuldades para escutar e interpretar, sonolência, cansaço, irritabilidade, hiperatividade intelectual, efeitos que, em alguma medida, o levam a desinvestir do processo de análise e o impedem de pensar psicanaliticamente durante a sessão com seu paciente. Perante este impasse que pode ser vivenciado em seu trabalho clínico, o analista pode blindar-se por uma defesa narcísica, não se dando conta de tudo isso que o atravessa e da intensidade que essa experiência possa conter, comprometendo, em muito, seu trabalho com o analisando e com o processo de análise.
Mas se o analista consegue se discriminar e discernir o que lhe acontece, pensar sobre este momento que compartilha em comum com seus pacientes, em que medida se sentiu inundado e atravessado por tais questões, ele pode se ver diante da possibilidade de recuperar sua função, retomar a transferência, escutar seu paciente a partir de seu lugar subjetivo e colocar-se novamente em "presença receptiva e em capacidade de espera, preservando o objeto transferencial", preservando a continuidade do processo analítico.
Não há dúvidas de que todo o investimento do analista em seu ofício, seu percurso de trabalho e escuta, seu tempo de experiência e troca com seus pares, e uma certa flexibilidade perante os reveses da vida (nisso, talvez, com sorte, a análise pessoal venha a contribuir e seja essencial), oferecem a ele um solo fértil e firme, onde pisar e fundar alicerces. Em “condição de exceção”, todos esses atributos constituem o enquadre interno do analista e possibilitam a continuidade de seu trabalho e a escuta de seu analisando, amenizando os ruídos internos e externos que atravessam uma sessão.
Perante tantas transformações e o pouco tempo que ainda tivemos para realocar e "acomodar" internamente tantas vivências, seus efeitos e a possibilidade de elaborá-las, talvez seja importante que o analista possa desabilitar-se de sua função fora de seu “consultório”. É só na clínica que ela faz sentido. Se puder dar ouvidos à sua humana fragilidade, talvez possa liberar sua escuta ali quando sua função for necessária e imprescindível.
Leila Veratti
Psicanalista, membro do Triep
Comments