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De fascínio e horror, quais doses nos pertencem?

“Dhamer: um canibal americano” (2022), série recentemente lançada pela Netflix, levou pouquíssimos dias para emplacar o primeiro lugar entre as mais assistidas. Seu conteúdo polêmico e dos mais comentados entre os críticos, elevou sua audiência e trouxe o assunto também para o consultório, principalmente através dos adolescentes, que, em seus relatos, mostram uma mistura de fascínio e pavor pelo personagem.



Críticas e polêmicas à parte, me ocorreu pensar que não é novidade esta mistura a que a série agora remete. Seja em seriados ou na vida real, a representação do assassino, do serial killer, suscita, no mínimo, curiosidade. Ela presentifica o que há muito está recalcado em nosso inconsciente.


Do famoso “Jack, o estripador”, passando por Norman Bates em “Psicose”, Hannibal Lecter, em “O silêncio dos inocentes”, pelo Maníaco do parque, Guilherme de Pádua (no caso Daniela Perez), o goleiro Bruno (no caso Elisa Samúdio), a deputada Flordelis (no caso do incesto e assassinato de seu filho adotivo e marido), até “Dahmer: o canibal americano”, muitas são as histórias fictícias entrelaçadas à realidade. As primeiras podem nos fascinar, as outras nos causam horror pela realidade crua que encarnam.


Preferimos, na medida do possível, colocar nas telas ou o mais distante que isso, o caldo perverso no qual estes personagens todos parecem ter forjado suas histórias e particularidades. Colocamos a monstruosidade “do lado de lá”. No entanto, estes enredos atualizam, ou fazem retornar em forma de notícias ou ficção, aquilo de que, em nossa vida psíquica, precisamos, em outros tempos, abrir mão e recalcar.


Para que pudéssemos nos constituir como seres sociais e em nome de um laço no qual fosse possível a vida em sociedade, precisamos nos afastar daquilo que um dia foi gerador de intenso prazer. O tabu do incesto e a proibição de matar foram centrais para sairmos de uma condição mítica de horda e caminharmos rumo ao estabelecimento do pacto civilizatório e desenvolvimento da cultura.


Estes atos que ora foram condenados e tidos como moral e criminalmente prejudiciais ao sujeito e à sociedade, silenciam, mas não se calam de vez. O fato de termos dado este longo passo, não significa que aniquilamos para todo o sempre estes traços. Fazemos, constantemente, o esforço de nos mantermos comprometidos com esta aliança. Ela é a forma de nos preservarmos e de preservarmos o outro de características intensamente perversas e hostis.


Quando vemos um assassino ou serial killer transpor estas barreiras, e muitas vezes sem seres pegos pelas autoridades ou ficando impunes pelas instituições que nos representam, nos remetemos à possibilidade das falhas deste sistema de defesa (psíquica e social) que ajudamos a construir. E, ao mesmo tempo em que nos indignamos com os crimes, nos fascinamos com a audácia do autor.


Aos nossos olhos, eles podem parecer inteligentes, inacessíveis, pouco se importam com o outro e com a Lei. Seu egoísmo nos faz acreditar que não há desamparo, nem qualquer outra forma de vulnerabilidade. Nos parecem imbatíveis e poderosos. Além de não terem medo de nada, provocam medo. É sempre o outro que, se puder e tiver tempo, deve recuar. O assassino ou serial killer não dá um passo atrás. Sua estratégia é puro ato. Isso serve não apenas para os personagens, mas diz também de um modo de funcionamento que leva o público a uma espécie de identificação. É, talvez, a este traço, que se deve o sucesso de uma série, uma história real ou de uma mistura entre elas, na qual o personagem da trama é um assassino.



Se nossa sociedade em sua forma de expressão atual, é marcada pela confusão entre sujeito-objeto, pela ilusão do consumo sem reservas proposto por um capitalismo-canibalístico e pelo mito da necessidade de alta performance, então estão presentes todos os ingredientes para o sucesso de “Dahmer: um canibal americano”. Devorar o outro, sem considerá-lo em sua humanidade e alteridade, fazendo disso o palco para a máxima performance, pode ser o que torna a série porta-voz de anseios, ilusões e horrores de toda uma sociedade. Ainda bem que, desta vez, apenas projetados na tela. Um sinal, mínimo, de que as defesas sociais e psíquicas ainda funcionam.



Leila Veratti

Psicanalista, membro efetivo do TRIEP leilacsantos@hotmail.com

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