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Desconstrução


Indo ao meu consultório, cedo o suficiente para sentir algum frio no rosto nessa época do ano, passo a vista por um morador de rua, já em idade de cultivar um vasto grisalho em sua barba. Sentado, envolto em sua coberta, talvez recém acordado, me olha com um sutil sorriso de quem percebe meu esforço ao pedalar uma leve subida. Acenando elegantemente com a cabeça, cerra os olhos enquanto realiza o gesto que, em sincronia com a valorização da sílaba forte, compôs um grave e honroso: bom dia!


A educada saudação me anima e convida à reposta. Busco ar, o suficiente para romper a distância entre a avenida em que ia e o ponto de ônibus que o acolhera durante a noite. Mantenho o clima de bom humor, toco levemente a aba do meu capacete e movo o rosto em sinal de reconhecimento ao cavalheiro. Alongando o “i”, digo apenas: dia!



Sigo meu trajeto e me vem à memória o personagem “O Vagabundo”, de Chaplin e em seguida uma linda cena de “Luzes da Cidade” em que a florista confunde o vagabundo com um milionário; cena esta, que o leitor pode ver ou revê-la acima. Em outro filme, sobre sua própria vida, intitulado “Chaplin” (1992), vemos os bastidores da gravação da cena citada, em que ele, como roteirista e diretor, se pergunta como faria para o público compreender a confusão da moça. Sua “sacada” foi coincidir a suposta partida do vagabundo com a batida da porta de um automóvel.


Códigos sociais fazem parte de qualquer cultura e sejamos uns mais cordatos, outros inconformados, cerimoniosos ou irreverentes, em geral temos uma boa percepção deles quando nos são corriqueiros. Conhecemos certos limites, nos enganamos em outros, podemos refinar ou mudar essas percepções com o tempo. Alguns gestos se conservam, por tradição, um aperto de mão por exemplo, outros ficam na memória das pessoas, registros do cinema, na arte em geral, na história etc.


O que antes da pandemia era código de algum grupo, de alguma faixa etária, se torna comum a todos. Como o soquinho ao cumprimentar, que hoje é algo conveniente a muitos.


Essas expressões carregam mensagens e o contexto é imprescindível para o destino que damos à leitura desses códigos. Ao vermos o presidente do país usar a expressão “CPF cancelado”, podemos notar a presença declarada de um falso enigma. A expressão representa o assassinato de um ser humano quando enfrentamos um vírus mortal em escala terrestre. Não se trata de um mal-entendido e sim de um recado explicito da sua postura frente à vida. Ou seja, que pouco importam os processos jurídicos, as leis, já que a mensagem é usada para assassinato dos “maus” em favor daqueles que se dizem “de bem”. É bom lembrar que, o criminoso tem direito a um julgamento, caso contrário ficam todos fora da lei. Isso me lembra uma tirinha da Mafalda, na qual Manolito pergunta: “se matássemos todos os bandidos, ficariam só os bons, né?” Ao que ela responde: “Não! Ficariam só os assassinos!”


Os códigos são fundamentais para a manutenção da civilização, fundamentais na comunicação em nosso dia a dia, são dialógicos e nas mãos de uma figura pública como essa convidam a que as fronteiras e permissividades, avancem, se fortaleçam, à tomada de terreno por um contexto favorável que autorize crueldades. Pior, se revele e se justifique para alguns aquilo que antes era visto como barbárie, crime e intolerável.



O spoiler já “prescrito” de Luzes da cidade, afinal falamos de um filme de 1931, é que a florista volta a enxergar no final e pode constatar a elegância do vagabundo às claras. Não há dúvida que a “foto do CPF cancelado” é mais óbvia que a batida de porta do Chaplin e que as cenas de Bolsonaro precisam dos que por algum motivo se recusam a enxergar o óbvio que alguns códigos representam.


Gustavo Florêncio Fernandes

Psicanalista, membro do TRIEP



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