Em uma das primeiras cenas do filme “A filha perdida” (Netflix, 2021) me chamou a atenção a fala em que o homem que recepciona a personagem principal em seu destino de férias, constatado seu atraso, pergunta a ela se havia trânsito saindo de Corinto.
É de Corinto que Édipo parte para tentar escapar as profecias que o aterrorizam ao colocar em seu destino a marca do parricídio e do incesto, mas é justo ao que sua fuga o leva. Parte incerto para seu exílio, guiado apenas pelas estrelas, diz ele.
Essa lembrança me leva a olhar o filme sob a ótica dessa mulher que tenta se desligar de sua rotina, como costumamos apostar ao sair de férias. Sempre nos esquecendo que é impossível fugirmos de nós mesmos.
O que se inicia como uma praia tranquila, onde ela poderia desfrutar de um isolamento controlado de quem viaja só a uma cidade de veraneio, logo tem sua tranquilidade invadida pela chegada de uma família volumosa e barulhenta. O primeiro contato que as mulheres dessa família fazem é recebido por ela com a distância de quem diz não ter a obrigação de ceder à obviedade de se submeter aos caprichos delas pelo fato de estar só.
A família que ela tenta aparentemente ignorar acaba sendo foco de sua atenção, fornecendo elementos que fazem com que vá recordando sua história e mais especificamente da relação com uma de suas filhas. A tensão criada no convívio forçado na praia inicia toda uma série de questionamentos vividos em seu casamento.
As questões sobre a maternidade se acentuam na trama representadas pela boneca de uma das crianças dessa grande família. Vendo uma discussão intensa dos pais a menina se descontrola e acaba por se perder e sua boneca some. A personagem principal assistindo a cena vai, em suas lembranças, revelando sua luta com a maternidade, o casamento e os desejos que não cabem no ideal de uma mãe sempre disponível, ao qual se sentia convocada. Quando nos damos conta ela havia pegado a boneca da menina e levado consigo.
Seu destino de férias é invadido por seus conflitos pessoais que impõem uma dinâmica inesperada que acabam por marcar esses dias com aquilo que ela tinha de mais íntimo. O convívio é recebido entre a proximidade e a agressividade que surgem quando ela tenta reestabelecer e resguardar sua intimidade. A relação experimentada por essa mãe assolada pelo remorso a leva a imprimir marcas de suas questões e de seus sofrimentos na criança que perdeu a boneca e em sua família.
Assim como Édipo que busca fugir do enigma de sua história, mas acaba se deparando com ele, vemos no filme essa mãe que é convidada a reviver em suas férias cada passo de sua história. A filha perdida é reencontrada sempre nessa dupla inscrição que nasce entre o possível e o ideal explicitando sua relação com as escolhas e a culpa que vai atualizando seus conflitos em cada passo vivido nessa ilha. Ela cuida da boneca roubada, a limpa, compra roupinhas novas, repetindo seu sofrimento entre aquela que cuida, mas também faz sofrer uma filha.
A ideia de Freud é justamente a de que frente aos nossos conflitos internos, satisfações não autorizadas a serem vividas conscientemente acabem por buscar outras formas de satisfação substitutivas. E que nossa batalha é sempre tentar um melhor desfecho compatível com a vida, frente aos nossos conflitos.
Gustavo Florêncio Fernandes
Psicanalista, membro efetivo do TRIEP
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