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Nossa mentira diária

Atualizado: 18 de nov.

“Nunca deixe os fatos atrapalharem uma boa história.” Essas foram as palavras que ouvi de uma amiga jornalista, dias atrás. Teria sido dita pelo seu editor chefe em tom de brincadeira e, segundo ela, é bastante repetida nas redações americanas.


Em um primeiro momento pensei na mentira se opondo a uma verdade factual, achei apropriada a reflexão para o dia primeiro de abril. Em seguida, percorri outro caminho, pensei pelo prisma de “uma boa história”, em um fato corriqueiro e tentei contá-lo sob essa ótica.


“À beira da piscina, em um dia ensolarado e relaxante, um marimbondo, grande como meu polegar, se aproximou sem que eu percebesse, até o momento em que senti o vendaval de suas asas próximas ao meu ouvido, um sonoro e assustador zumbido e o leve toque de suas pernas em minha orelha. Na sequência meus gestos desesperados me salvaram da ferroada. Restou um breve arrepio que se difundiu em sua causa pelo gole avantajado de gim, me sentei novamente.”


Temos a diferença entre um caso e um causo: o primeiro seria mais factual, enquanto o segundo, floreado, pode buscar o riso e estaria recheado de exageros e mentiras.


Ficamos mais íntimos, com Freud, da teatralidade das histéricas, em que elas estariam em contato com uma realidade não factual, mas que representava uma outra situação, que colocava em cena a sexualidade reprimida e insuportável de ser vivida à luz do dia naqueles tempos.


É conhecida a frase de Nietzsche: “não há fatos, apenas interpretações”. Tomo a liberdade e faço uso da palavra “interpretações” como o que se dá no teatro para lembrar que interpretamos nossas próprias histórias quando a contamos. Ao envolvermos os outros na narrativa, nos vemos em uma realidade compartilhada, no caso, a dor da picada, mais suportável do que o desconhecido e misterioso medo sem controle. Não ficamos sós, como em um delírio. Por exemplo, ao escutar o desespero de uma narrativa de alguém que conta que as lâmpadas quando se acendem, iluminam sua mente e todos podem ver seus pensamentos.


Insuportável não seria a forte dor do veneno, mas a solidão de ninguém ouvir meu pavor. Por isso quando contamos “nossos causos”, tentamos convencer o ouvinte da pertinência deles, desse medo do marimbondo. Buscamos fazer com que a verdade oculta desse medo sem controle se esconda por trás da realidade da dor da picada, esta sim compartilhada com os outros.


Em uma data como o Dia da Mentira somos autorizados, não a contar mentiras, afinal, as contamos todos os dias, mas a nos declararmos mentirosos e rirmos de nossa condição. Condição esta em que para existir a civilização temos a necessidade de pactos compartilhados que nos trazem a experiência da realidade social na qual conseguimos ocultar a dimensão subjetiva, enigmática, fora da ordem e que insiste em se fazer presente nos sonhos, nos sintomas, nos desesperos.



Mais do que nunca as imagens podem enganar e seria fácil nos dias de hoje para um adolescente entusiasta dos computadores simular com perfeição imagens do homem pisando em Marte. Imagens enganam enquanto conversas trazem dúvidas e a verdade, oculta até mesmo de nós, se revela em nossas ficções.


Então, preste atenção na mentira que escolheu para pregar uma peça no dia 01 de Abril de 2021.



Gustavo Florêncio Fernandes

Psicanalista, membro do TRIEP


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