É muito conhecida a queda de um avião na Cordilheira dos Andes na década de 70. A história ficou famosa pelos relatos dos limites enfrentados pelos sobreviventes, o fato de terem tido que se alimentar dos cadáveres de outros passageiros ficou na lembrança de muitos de nós. Alguns morreram por não conseguirem se nutrir com essa alternativa.
Com esse relato é possível se aproximar de uma diferença fundamental para a tentativa de compreensão do ser humano a respeito da “ruptura” com a concepção de instinto. Note que mesmo nos limites da vida, não brotam em nós algo que nos liberte de nos apropriarmos do mundo pela cultura, não conseguimos nem no extremo da fome nos alimentarmos sem estarmos remetidos aos nossos tabus, a nossa civilização.
Na história do acidente mencionado, alguns sim, se alimentaram dos cadáveres, mas para isso tiveram que simbolizar o ocorrido, conversando para tentar se convencer da única opção que tinham, deram as mãos, oraram etc. Se observarmos um animal faminto sabemos que a voracidade da fome não opera restrições.
Esse acidente nos ajuda a pensar sobre a particularidade da experiencia humana que a teoria psicanalítica conceitua: diferenciando o instinto no animal e o que para a condição humana se convencionou chamar de pulsão. A argumentação freudiana explicita que os objetos do mundo ao qual nos ligamos, seja para amar, alimentar, trabalhar etc. não são fixos e sim o mais variado possível. O nosso saber para estar no mundo parte da civilização por nós criada e não de comportamentos pré-determinados pelo instinto. Aos animais, frente restrições alimentares, seguirão, ao que tudo indica, apenas o imperativo da sobrevivência.
A fome e a morte com que lidaram no acidente foi ritualizada de maneira a não se inscrever como barbárie e sim como a luta pela vida. Porém com a guerra, a miséria vem junto com esse sentimento de injustiça extrema, de um acontecimento desumano que leva à ruptura das referências da organização social e a marca de que a invenção do nosso mundo se baseia nesse recorte simbólico operado pelas palavras.
Inventar um mundo não se dá “naturalmente” e carece de nosso envolvimento, esforço e reponsabilidade, incluso com nossa destrutividade, para manter viva a ideia de que podemos transformar o mundo para que seja mais justo.
Gustavo Florêncio Fernandes
Psicanalista, membro efetivo do TRIEP
Comments