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O vazio do domingo

“Para preencher um Vazio Inserir a Coisa que o causou - Tenta bloqueá-lo com outra – e mais vai se escancarar -

Não se pode soldar um Abismo

Com Ar.”

(Emily Dickinson)



O filme espanhol, do diretor Ramón Salazar (Drama, 2017, disponível na Netflix) nos apresenta Chiara (Bárbara Lennie) e Anabel (Susi Sánchez) como personagens centrais da trama (contém alguns spoilers). Nas cenas iniciais, Chiara está numa floresta de cores apagadas, frias. Agachada, olha para um buraco, um escuro. Num contraponto, Anabel se apresenta segura e decidida ao adentrar um salão impotente, mas ao caminhar, tropeça.


Em princípio não sabemos da relação entre as duas mulheres. Mas logo nos é apresentado o fato de serem mãe e filha, embora desconhecidas uma à outra. Chiara tem um pedido inusitado a fazer à Anabel, sua mãe, que a deixou quando ela tinha cerca de cinco anos de idade. Esse reencontro mostra todo o desconcerto, estranhamento e as tentativas de aproximação com os quais elas tentarão lidar, para estabelecerem um mínimo vínculo. Nessa construção de uma relação cercada por diferentes afetos, vemos uma filha lidar com as marcas do abandono, com o excesso de ausência e vazio que foram talhados em sua história subjetiva a partir de sua primeira infância. E uma mãe movida pela necessidade de, talvez pela primeira vez, banhar sua filha numa linguagem de amor e compaixão.


Chiara se apresenta a nós olhando para um buraco, como que remetida a um vazio, um “poço sem fundo”, uma ausência sem nome. Desde Freud, conhecemos que o excesso é uma das qualidades do que é traumático. Com outros autores psicanalistas, entre eles André Green, compreendemos que o excesso é também uma das categorias para pensarmos a formação do psiquismo. São os excessos que nos lançam à vivências de angústias inomináveis, irrepresentáveis, catastróficas, traumáticas.


Green (1982) cita Pascal para ilustrar o modo como, ao sermos invadidos pelos excessos, podemos nos desorganizar psiquicamente e viver um sofrimento, por vezes, insuportável:


“Nossos sentidos não percebem os extremos, demasiado barulho nos ensurdece; demasiada luz nos cega; o excesso de distância ou proximidade atrapalha a visão(...) O excesso de Verdade nos surpreende. As qualidades excessivas não nos são sensíveis, mas inimigas. Nós não as sentimos, as sofremos.”


E quando em psicanálise falamos em excesso, nos referimos tanto ao excesso de presença quanto ao excesso de ausência. E os primeiros momentos nos quais experimentamos isso, são vividos com nossas primeiras figuras de cuidado, em geral (mas não sempre e não somente), com a mãe. No caso da personagem Chiara, o excesso faz sua marca pela via da ausência, da privação, de um vazio que lança o sujeito numa vivência de aniquilamento e esfacelamento de si. É como se, lançado a este vazio, o que fica em risco não é uma parte do sujeito ou de sua história, mas ele como um todo, sua integridade fica ameaçada, dando lugar apenas a um estado de vulnerabilidade e instabilidade física e psíquica.


O excesso de vazio impõe rupturas e escassez de pensamentos, dificultando ou impedindo que o psiquismo possa trabalhar de modo a preservar no sujeito as ligações com a vida e as relações de vinculação com a percepção, os sentimentos e os pensamentos, integrando a si e à sua história as experiências vividas. Este excesso desorganiza o psiquismo e passa a comprometer o sujeito não em sua possibilidade de fala, mas nos processos somáticos e nas atuações que ocupam seu lugar. O sujeito sofre sua realidade, em lugar de poder dizer dela e de si. E em meio a isso, promove rupturas com seus vínculos, com seus investimentos amorosos de diferentes interesses e, em última instância, rompe com a vida.


O drama de Chiara é, de alguma maneira, ilustrativo de muitos casos que têm se apresentado na clínica psicanalítica nos últimos tempos. As queixas destes “novos pacientes” dizem respeito a vivências de tédio, grande insatisfação e desinteresse pelo mundo ao seu redor, experiências de despersonalização e desrealização, intensa solidão, sensação subjetiva de inconsistência e vazio interno, bem como um desconhecimento de sua identidade e vivências de extrema vulnerabilidade e fragilidade. O que banha tudo isso é uma angústia intensa e desorganizadora, que traz ao sujeito a sensação de estar em constante queda livre, sem conseguir, de fato, alcançar o chão, um solo minimamente consistente, onde possa pisar e seguir.



Estes pacientes requisitam do analista ainda mais manejo e sustentação (handling e holding – Winnicott), convocam a existência de um espaço de continência que os possibilite projetar suas angústias impensáveis e desorganizadoras (continente e conteúdo – Bion) para que seja possível, com o auxílio da função analítica e da capacidade de rêverie do analista na relação transferencial, que elementos traumáticos de sua história sejam apresentados, nomeados, pensados, sonhados e, por fim, elaborados e integrados ao eu. E que ao longo de todo esse trabalho, o sujeito possa retomar o estabelecimento de vínculos com o mundo externo, com seu mundo interno e sua vida de fantasia, ampliando a plasticidade de seus investimentos psíquicos e de laços com a vida. Isso, quando possível...


O filme é lindo e denso! Apesar de transitar por entre uma certa melancolia, traz a beleza das possibilidades de reparação pela via da construção de vínculos afetuosos e amorosos.



Leila Veratti

Psicanalista, membro efetivo do TRIEP leilacsantos@hotmail.com


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