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Psicanálise e processos criativos

Em tempos nos quais ser ultramoderno e estar nas redes, implica (com exceções) em reproduzir conteúdos control c + control v, dancinhas intermináveis com os mesmos passos e músicas, ou apontar o dedo para uma frase que se quer “chamar a atenção”, usando para isso o máximo de performance, a temática da criatividade tem se colocado como um contraponto em evidência. Com o intuito de “criar conteúdo”, temos reproduzido mais do mesmo, e do mesmo, e do mesmo. Claro que há exceções! Ainda bem! Pois nestas brechas é que reside a possibilidade de que alguma criação, de fato, aconteça.



A criatividade tem sido um dos conceitos mais discutidos nos últimos tempos, estando no centro de debates que priorizam desde o conhecimento de seus mecanismos, até a forma como ela se apresenta enquanto resultado de um processo. Em diferentes setores (sociais, escolares, empresariais) é a criatividade que está no topo da lista de preocupações, no que se refere ao seu desenvolvimento/estimulação, instrumentalização e ampliação de seu “uso” na vida comum.


A psicanálise enquanto ferramenta de leitura e compreensão de diferentes marcadores culturais, nos serve como instrumento também aqui. E para pensar questões voltadas à criatividade, seguiremos alguns aspectos do pensamento do psicanalista e escritor britânico Christopher Bollas. Em seu texto “Criatividade e Psicanálise” (2010), ele fez um estudo cuidadoso comparando as associações livres (método utilizado por Freud na escuta de seus pacientes e “atualizado” pelos analistas em seus encontros analíticos com seus analisandos) ao processo criativo, a partir do qual estabeleceu a ideia de que tanto num, quanto no outro, o sujeito “se deixa levar” por suas percepções, sensações e ideias, mantendo em níveis baixos (quando possível) os critérios de censura, autocrítica e considerações de “absurdo”. Bollas afirma que quando um indivíduo se apresenta muito acanhado ou muito autocrítico, por exemplo, isso certamente influencia em sua criatividade.


Nesse sentido, podemos pensar o quanto aspectos mais voltados à consciência podem interferir em construções e produções que seriam pertencentes à lógica inconsciente. Mas existe criatividade “inconsciente”?


Se pensarmos que existem conteúdos de nossa experiência que não estão diretamente acessíveis à nossa consciência e que para serem acessados/pensados precisam passar por um valioso e extenso trabalho psíquico, sim, existe uma espécie de criatividade inconsciente.


Bollas faz uma aposta num inconsciente receptivo (que seria paralelo ao inconsciente recalcado), capaz de recepção, concepção e elaboração de novos repertórios simbólicos. E afirma que, como nele há traços e aspectos de nossas experiências não foram apagados, mas permanecem em nosso psiquismo como traços de memória, eles podem ser “redespertados”, “redescobertos” a partir de novas situações, novas experiências que possuam intensidade suficiente para reativá-los. Muitas vezes é uma cor, um cheiro, uma música, que nos convocam a emoções mais intensas e promovem em nós a possibilidade de ressignificar uma experiência esquecida, reorganizá-la em novas roupagens ou até mesmo criar algo novo. Nesse sentido, podemos dizer que o Inconsciente tem potencial criativo. Ele “permite” a uma pessoa pensar, fantasiar, deslocar, condensar, figurar, ressignificar, reorganizar, elabora, criar...


Quando estamos vivendo uma experiência criativa, nem sempre sabemos dizer o que foi que nos convocou num primeiro momento, para determinada produção/criação. Alguns apostariam em uma técnica, uma metodologia... Bollas aposta em seu conceito traduzido para o português como “gênera psíquica”. Ela consiste numa disposição psíquica (que faz contraponto ao trauma) que implica em desenvolvimento e expansão do psiquismo. A gênera psíquica promove redes de receptividade, ligação e abertura a novos investimentos libidinais. E funcionam como pontos nodais para onde estes investimentos convergem e/ou de onde eles partem. Implicam em uma espécie de mergulho em experiências psíquicas e emocionais que interagem entre si e se encaminham para um novo modo de compreensão.


Esse mergulho diz respeito a uma experiência intensa de emoções ou eventos comoventes, que podem nos despertar tanto a partir de um evento externo (como um encontro com uma pessoa; a maneira como somos tocados pela leitura de um livro; uma caminhada extenuante mas produtiva, uma música que nos mobiliza algo, a experiência estética com um oba de arte...), como a partir de um evento interno (a rememoração de uma lembrança; o surgimento de um desejo ‘inesperado’; o aparecimento de uma ideia ‘misteriosa’). São estados mentais que surgem das mais variadas situações da vida cotidiana e promovem o encontro entre nossos interesses internos (e muitas vezes inconscientes) e os externos.



Dessa forma, o processo de criação se materializa do encontro de nossa vida psíquica (de nossas histórias e experiências, de toda uma rede interna que compõe nossos interesses e investimentos), com objetos do mundo real/formal que nos possibilitem transformar nossas experiências emocionais subjetivas. Quando um aspecto de nosso psiquismo (percepção, desejo, ideia, pensamento, lembrança...) encontra no mundo externo um objeto que pode representar nossa vivência interna e ser estruturado como uma produção individual, isso nos permite um novo modo de entender as coisas, de nos relacionar conosco, com o mundo e com as pessoas ao nosso redor, de maneira mais espontânea e criativa.


É dessa capacidade e possibilidade de expansão e enriquecimento que a criatividade se torna, então, promotora e geradora. “Onde não há criatividade, cresce o deserto” (F. Nietzsche).



Leila Veratti

Psicanalista, membro do Triep


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