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Síndrome da Resignação

Um sujeito não é concebido como tal se o deslocarmos de seu tempo e suas contingências. Com uma criança isso não seria diferente. Cada tempo apresenta um recorte da História e, a partir dela, é que se produz um saber sobre o que é uma criança, qual o lugar que ela ocupa na cultura e o que a determina enquanto ser social. Supor que há ali um sujeito e que ele é passível de sofrimento, nos faz pensar a infância naquilo que ela tem de mais singular.


“A vida em mim” (2019), documentário disponível na Netflix, aborda um fenômeno apresentado por crianças, filhos de famílias de imigrantes refugiados, que sofreram traumas físicos e psicológicos em seus países de origem, como consequência do enfrentamento de questões políticas e étnicas. São crianças que apresentam um sofrimento tão intenso, que parecem se desligar da vida.


Estas crianças testemunharam situações terríveis junto de suas famílias (ameaças, assassinatos, estupros, espancamentos...), e ao se refugiarem na Suécia, começaram a frequentar a escola, ter amigos, aprender a língua e a cultura do país. Mas perante medidas cada vez mais restritivas do governo, a possibilidade de suas famílias serem deportadas se torna uma ameaça mais frequente. A incerteza de uma continuidade de futuro longe da violência que presenciaram, e uma espécie de dúvida de que seus pais conseguirão cuidar delas e de si mesmos, afeta estas crianças de maneira que elas deixam de investir no mundo ao seu redor e se isolam dele como uma medida de proteção.


A espera de uma resposta definitiva sobre conseguirem asilo, com a possibilidade de refazerem suas vidas e viverem naquele país, suscita grande angústia e sofrimento gerando em algumas das crianças destas famílias, um quadro sintomático que ficou conhecido como “síndrome da resignação”, que passou a ser frequente na Suécia em 2003, ganhando força, novamente, em 2016. Apesar de ocorrer também em outros países, alguns deles não levaram adiante estudos sobre o tema.


Nesta síndrome, os primeiros sintomas apresentados pelas crianças se referem a deixar de falar, só ficarem deitadas, imóveis, sem emitirem nenhum som, comerem e beberem cada vez menos até deixarem de fazê-los, e se isolarem do mundo, apresentando uma apatia tal que lembra os estados de coma.


Winnicott (1939) definiu este tipo se vivência traumática como “blackout emocional”, afirmando que crianças expostas a uma experiência intensa de trauma e tristeza, podem apresentar grandes prejuízos em termos de desenvolvimento físico e/ou emocional. No documentário, acompanhamos as histórias de três crianças: Daria (Dasha), Karen e Leyla. Cada uma delas vivendo, com suas famílias, um longo período de incertezas após a vivência de um evento extremamente traumático.


Para que elas possam se restabelecer, é necessário que seus pais invistam nelas interesse, cuidados, lhes façam exercícios, massagens, as alimentem, banhem... E o mais importante, mencionado em um dos momentos do documentário, é que os pais falem com elas, que lhes contem o que está acontecendo, que possam banhá-las de palavras e afetos.


Quando isso é passível de uma legitimidade e a criança se sente novamente investida afetivamente por seus pais, é como se ela percebesse que eles se sentem mais seguros, que podem cuidá-la e que estão renovando suas esperanças na possibilidade de um futuro melhor, retomando uma “vida familiar normal”. A partir da retomada dos pais de sua capacidade de sonhar, de desejar, eles renovam suas esperanças e ajudam a criança a encontrar saídas para sua vivência de blackout emocional.


A esperança é “um princípio organizador da vida psíquica, indispensável para seu bom funcionamento” (Figueiredo, 2003). Enquanto estrutura subjetivante, ela é constituinte de nosso psiquismo e nos possibilita fazer o psiquismo trabalhar para elaborar e dar contornos e sentidos àquilo que vivenciamos de mais traumático. E é a esperança que sustenta em nós a capacidade de sonhar, de desejar um futuro, de fazer projetos e caminhar nesse sentido (Rocha, 2007).


“A melhora da criança depende da possibilidade de restaurar a esperança. Os pais são os que transmitem essa esperança. Deve haver um tipo de comunicação, o tom, o toque, a atmosfera no quarto, algo que faz a criança sentir que os pais têm esperança” (trecho do documentário).



Quando a esperança dos pais é resgatada, a criança começa a melhorar. É como se a esperança funcionasse como algo capaz de dar contornos e palavras que possibilitem à família retomar aspectos de investimentos psíquicos e se sentirem protegidas daquilo que até então ameaçava suas vidas e sua integridade psíquica e emocional.


Vale assistir não apenas para pensarmos a condição dos refugiados, que tem ocorrido cada vez com mais frequência no mundo todo, mas também para considerarmos que, quando uma criança apresenta algum sofrimento, isso requer nossa legítima atenção e escuta!


Leila Veratti

Psicanalista, membro efetivo do TRIEP leilacsantos@hotmail.com


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