Segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda em seu livro “Raízes do Brasil”, nós, brasileiros, somos cordiais. Cordiais, generosos e hospitaleiros eram as características mais destacadas pelos visitantes do Brasil nos séculos XVIII e XIX.
Estudiosos de sua obra afirmam que ele foi mal interpretado quanto à afirmação de que somos cordiais, pois o que quis dizer com cordial é aquilo que remeteria à origem da palavra em latim – do coração. Significaria então, que agimos pelo coração, inclusive quando odiamos.
O que é o ódio? De onde vem?
O ódio é mais antigo que o amor, existe desde o princípio do ser, de modo primitivo. No início o psiquismo considera que tudo o que seria prazeroso faria parte de si e tudo que fosse desprazeroso não faria parte de si, mas do mundo. Nessa oposição prazer - eu/desprazer - não eu, começaria a se configurar o eu narcísico. O mundo seria sempre mau e desprazeroso.
Como todos os afetos, o ódio é parte do humano, é parte das nossas experiências.
É um afeto fonte de ideias e desejos inconscientes. Como expressão do narcisismo é uma paixão da alma e apresenta múltiplos semblantes.
É muito difícil que alguém reconheça o ódio como algo irradiando de si próprio.
“Eu odeio”, quando ousadamente enunciado, sempre se coloca como uma reação: é o objeto que é essencialmente odiável e daí é ele que desperta o ódio.
O amor do outro se constituiria posteriormente, quando o Eu pode reconhecer que o outro e o mundo podem ser também fonte de experiências de prazer e satisfação, e não apenas o eu narcísico.
O ódio também é aquilo no qual o amor tende a reverter-se como efeito de uma frustração com o objeto que venha a desempenhar um desprazer.
O amor não é algo puro, nunca caminha sozinho, ele tem a sua alma gêmea, que é o ódio: eles têm uma relação mesclada que pode promover uma série de distúrbios desastrosos na vida de alguém. Uma mistura, um entrelaçado que, dependendo das circunstâncias, é possível tornar uma vida mais amorosa ou mais odienta.
Como tendemos a considerar que o ódio é sempre do outro, por exemplo, se vamos de São Paulo para o Rio de Janeiro, ou vice-versa, é capaz de alguém perguntar – “Não tem medo de ser assaltado?”. Em outro exemplo: negando a responsabilidade de cada um com a coletividade realizasse aglomerações exibidas em postagens nas redes sociais, como se o problema fosse somente de um grupo de “alarmistas”. Ou então, considerando que, afinal, é tudo exagero, “coisa da mídia golpista”, não se usa máscara.
A imaginação nunca falha quando se trata de encontrar um bode expiatório que encarne o causador de problemas, justificando o ódio e o desejo de destruição.
Aquilo que falamos, aconselhamos ou que julgamos que será preciso dizer ou fazer ao outro, sempre foi “o melhor” e para o seu próprio “bem”, foi por amizade, de “coração”, e nunca algo que poderia ferir ou matar. Se colocamos o ódio distante de nós, como algo que não nos pertence, acreditamos agir sempre com as “melhores intenções”. E, assim sendo, chega-se ao extremo de “ajudar e proporcionar um tratamento precoce” com remédios sem comprovação científica.
Pensando e discursando sobre um ódio que está sempre no outro, quando ele se apresenta em nós, o vivemos como algo espantoso e inexplicável. Nutrimos a imagem ilusória de sermos uma ilha de beatitude, cercados de gente odienta por todos os lados.
O ódio é um afeto que ninguém nega. O problema é que negamos que ele esteja em nós mesmos. Temos uma incapacidade de perceber o ódio em nós inversamente proporcional à nossa capacidade de notá-lo nos outros.
Vale ressaltar, também, que o ódio serve para alguma coisa. Serve para a constituição da singularidade. Encravado no interior do Eu, o ódio se mantém como uma marca ativa e decisiva da diferenciação/separação do Eu em relação ao outro e da afirmação do sujeito frente ao objeto. Constitui-se, assim, numa força psíquica que fortalece a identidade e a representação de si, aguça percepções, potencializa o Eu e suas fronteiras e demarca limites a fim de manter a necessária distância do outro.
Se queres trilhar no amor, prepara-te para o ódio.
Daisy Lino
psicanalista membro do TRIEP
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