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Ta olhando o que?

Quando soube do falecimento do psicanalista e escritor Contardo Galligaris, em março de 2021, tive vontade de ver alguma coisa sobre ele na internet. Enquanto assistia, cativado pelo seu carisma, o que acredito ter sido uma das últimas falas públicas em um episódio do Café Filosófico no Youtube, fui surpreendido por um anúncio no meio do vídeo. O curioso é que o anúncio tratava de um curso sobre regressão hipnótica, cuja técnica prometia, como de costume, desvendar os mistérios e traumas esquecidos, revelando o sentido de diversos acontecimentos da vida do interessado.



Na apresentação, Contardo dizia o oposto: em resumo, ele defendia a tese de que o sofrimento em uma depressão não ocorre por ter a vida perdido o sentido, mas por um excesso de sentido. Ocorre por buscarmos sentido em tudo e a todo o momento, de forma racional, perdendo a capacidade de viver experiências que não possuem uma orientação clara e objetiva, já que o claro e objetivo parecem representar a validação de que estaríamos em um caminho garantido e digno de nossos investimentos.


Sabemos, hoje em dia, que as escolhas dos algoritmos direcionam anúncios, músicas, vídeos etc. Mesmo antes da potente tecnologia de dados atual, o anunciante do intervalo do futebol sempre foi diferente daquele dos programas matinais.

Enfim, embalado pelo sentido oculto do acontecido, me distraí um pouco imaginando a razão do anúncio naquele momento. Pensando no uso da tecnologia do direcionamento a partir dos algoritmos, me perguntava: será que dizia algo sobre mim? Não tinha muita relação com o vídeo que eu assistia, talvez com o programa de uma maneira geral, quem sabe seria fruto do cruzamento dos meus dados disponíveis na internet?


A publicidade é pautada em nos fazer desejar, criando demandas renovadas, na moda por exemplo, a cada estação, sabemos disso. Como sabemos também que não existe objeto no mundo que complete a nossa falta. A demanda é renovada porque nos toca intimamente nesse ponto de nossa estrutura, que sempre relança expectativas de que poderíamos nos sentir completos. O desejo é temática central à psicanálise que busca, como tratamento, desatar o laço entre a demanda e o desejo, para que se torne possível uma experiência de escolha singular.


Nessa engrenagem, o olhar é peça fundamental, já que somos provocados por essa via, que nos leva a direcionar nosso olhar, atravessado por questões pessoais, subjetivas, inconscientes e a demanda de estímulos do nosso cotidiano. A experiência contemporânea evidencia, mais do que nunca, como temos investido o olhar de forma desenfreada pelo uso das redes sociais.


Freud comenta, em um de seus textos, o que ocorreria em uma cegueira histérica (sem uma causa fisiológica): a jovem histérica de sua época se tornaria cega, justamente para não entrar em contato com o olhar que desejava ver o que era proibido e de natureza sexual. Para não ver aquilo que despertava seus desejos mais intensos, ela passa a não ver mais. Jogando o bebê junto com a água do banho, conclui Freud.



Para onde investimos o nosso olhar não diz tudo sobre nós, mas seguramente diz algo sobre nossos desejos, por onde se orientam questões íntimas, que podem ser inquietantes à luz da consciência.


A expectativa por sentido, para podermos nos autorizar às experiências na vida, pode ser bastante paralisante. Se mostrará incompleta em suas respostas, relançando sempre a esperança em busca de um sentido mais preciso para nossas escolhas. Essa mesma expectativa por sentido nos priva das escolhas possíveis, incompletas e que nos colocariam em sintonia com as construções e vivências de uma posição singular no mundo.



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