A gente se acostuma com tanta coisa. Com café da manhã apressado, com desconforto de
sapato apertado, com barulho de ventilador. Às vezes começa insidioso, sem muito alarde e,
quando nos damos conta, se instala manso e vai ficando, como se alargasse o buraco da nossa
tolerância ao desassossego.
Desse jeito é que a gente foi acreditando. Se acomodando à história de um lado só de que
fruir a vida era jornada de 40 horas semanais com um domingo de descanso ao mês. Acreditando que juntar uns punhados de moedas, pelas as quais se pagou com um quinhão da
própria existência, e trocar por um par de tênis da moda era a direção para onde o desejo
apontava.
Foto: Escultura Albert Gyorgy
A gente se acostuma mesmo. Com o barulho dos carros, o cheiro escuro da fumaça tóxica, a
sinfonia distópica da televisão que anuncia um punhado de corpos abatidos numa guerra já
nem tão distante assim. Com a violência, o descaso, os maus tratos, a pandemia, o uso de
máscara, a contaminação. Desmatamento, queimada, cada dia um recorde de temperatura, os
mares subindo. E a gente vai morrendo, morrendo. O mundo gira, a geleira derrete, o
bilionário constrói um bunker à prova da miséria humana. E a gente entra e vai ficando à
vontade. Num mundo à beira do apocalipse, onde a necropolítica tem cor, tem endereço. Mas
já nos sentamos e agora dá preguiça levantar para pegar um copo d'água na cozinha. Ou pode
ser pavor mesmo. Pavor do que a gente vai encontrar lá.
Ao lado de Freud em seu O mal-estar na civilização, não vemos mais conciliação possível,
mas apenas desilusão na humanidade. O ser humano em total desamparo numa civilização
construída na dissonância entre si mesma e as exigências pulsionais, como coloca Ana Lizete
Farias em seu artigo Psicanálise e meio ambiente, sentado em cima de um contrato social
mortífero, pautado na predação generalizada, que só faz agigantar o vazio. Mas, como o próprio Freud também aponta em seu texto, diante do abismo também há a
possibilidade.
Foto: Escultura Albert Gyorgy
No meio desse caos que se finge ordenado, tem pessoas gritando. Levantando a voz para
mostrar que a gente está cego, olhando para frente com cabresto, acreditando que a
humanidade caminha em frente, acumulando e acumulando, porque é esse o único caminho
possível. E essa gente com a arma apontada para o peito protagoniza a alvorada de "novas"
epistemologias, cujos modos de relação consigo, com o outro e com o mundo partem de um
outro paradigma, de uma outra maneira de operar o discurso. Povos originários vêm
marchando de um mesmo fôlego de mais de 500 anos de chumbo, massacre e genocídio,
mostrando que há outras respostas. E respostas numa língua que o colonizador jamais será
capaz de compreender: a do coletivo, da natureza, da contraprodução, do contraconsumo,
como argumentam Mollica e Galdino em seu artigo sobre as cosmovisões indígenas e o
inconsciente.
O psicanalista Vladimir Safatle, falando sobre o texto de Freud, pontua que a gente pode
fazer coisas muito diferentes com o nosso desamparo. A gente pode transformar ele em medo
ou em angústia, paralisar diante do seu tamanho. Mas também podemos nos apropriar da
força que ele tem, e "[...] criar um gesto de imenso potencial transformador". O nosso
desamparo, para além de dor funda, é também nossa possibilidade de emancipação.
Mirando a beira do fim do mundo, do nosso mundo como o conhecemos, talvez seja o
momento preciso de agarrarmos essa possibilidade.
Inspiração
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
Flávia Pagliusi
Psicanalista, membro colaborador do TRIEP
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