Na 34° Bienal de São Paulo, uma obra sonora me chama a atenção em especial. Escuto um grito indefinido e aflito pelos corredores do pavilhão de Niemeyer. Vou me aproximando e me deparo com um emaranhado de fios vermelhos por cima de uma caixa de papelão. Escuto nesse grito “free mom” e comento com minha amiga, que ouve “wisdom”. A obra sonora FRYDM! (2011) de Luisa Cunha me levou a pensar sobre a escuta do psicanalista.
A arte contemporânea tem a intenção de interagir com o público de modo a provocar a reflexão, e é incontornável a expressão de nossa subjetividade nessa “leitura” da obra.
Outra instalação sonora, nessa mesma bienal, apresenta um poste inclinado com quatro alto-falantes em forma de cornetas. Instalados em um poste de cimento emitem mensagens com frases claras, diferentemente da experiência anterior. Somos tomados pela curiosidade e bom humor ao ouvirmos frases, que articulam um conteúdo de cunho intelectual, serem misturadas a uma estética sonora em que a entonação, timbre e equalização da voz nos alto-falantes, remete ao convite animado às compras no carro do ovo, da pamonha etc.
Uma alucinação auditiva em uma paranóia tem características similares à experiência criada pela obra FRYDM! Os fragmentos sonoros, sussurros, a voz por trás da porta, que não podemos definir, tomam forma de palavras claras ao encontrarem os pensamentos dos quais o paranóico quer se ver livre. São escutadas como vozes que vem de fora, de um outro que grita aquilo que não pode suportar ser pensado pelo próprio sujeito. Na experiência neurótica, algo similar se passa, porém duvidamos do escutado. Os pensamentos que se desencadeiam mobilizam culpas, preocupações etc. As dúvidas na fantasia neurótica são distintas das certezas que experimentam os psicóticos.
A fala de um neurótico em sua análise chega como mensagens cifradas que podem se aproximar da segunda experiência descrita. As marcas daquele que fala de sua história, têm seu estilo misturado aos códigos compartilhados e socialmente vividos. Por vezes nos levam a expressar algo triste com um sorriso no rosto, embargar a voz em um momento inesperado, mudanças de entonação misteriosas. Todos estes elementos são apreendidos na escuta e fazem parte de uma análise. Uma espécie de mensagem dupla que aponta para algo desconhecido que ao final, tal qual uma obra de arte, é a expressão singular de um arranjo que interpela o próprio falante e que por ele deve ser construída como leitura, uma leitura de si. Os apontamentos do psicanalista servem para auxiliar a desvelar o caráter estranho da construção que se tornou corriqueira e passa despercebida por aquele que fala.
Marcel Duchamp interpelou os olhares quando expôs em uma galeria um mictório de porcelana assinado com o pseudônimo, R. Mutt, intitulada “Fonte” (1917). Fez com que todos repensassem e se perguntassem: o que afinal é arte? Tirado do seu local habitual, o urinol, causa estranheza àqueles que esperavam encontrar algo com que estariam acostumados como representação da ideia de obra de arte. Algo similar se passa ou espera-se que se passe em uma análise. Que os elementos trazidos de uma espécie de outro lugar se façam presentes através dos atos falhos, dos chistes, dos sonhos, dos esquecimentos, das mudanças de entonação.
O diálogo da arte contemporânea com a psicanálise não ensina que o psicanalista seja um artista inspirado a criar enredos sobre os mistérios que cada vida carrega, mas que ele é aquele que pode ser atravessado pela experiência de que algo está sendo dito para além da construção do enredo trazido pela fala do paciente. Cabe ao psicanalista auxiliar essa travessia da ilusão, em que aquele que fala acredita conhecer todas as suas motivações de forma racional e clara. O contato com a dimensão da nossa loucura não nos faz loucos, mas nos deixa um pouco mais avisados sobre alguns mistérios da nossa existência.
Gustavo Florêncio Fernandes
Psicanalista, membro do TRIEP
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