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Deus me livre, mas quem me dera!

Atualizado: 11 de mar. de 2021

Pode ser que em algum momento de sua navegação pelas redes sociais, você já tenha se deparado com algum meme utilizando a frase: “Deus me livre, mas quem me dera!” Geralmente ela aparece associada a algo muito desejado, mas que, por algum motivo, precisa ser afastado do campo do desejo e colocado muito longe na listinha de intenções.



A mesma frase também traz consigo a ideia do quanto é difícil lidar com a barreira de interdição (seja ela qual for) que se coloca entre nós e o objeto de desejo, nos impedindo de alcançar este algo almejado e agora “desdenhado”.


A frase/meme é similar ao que alguns reconheceriam mais facilmente no ditado “quem desdenha quer comprar”, ou nas manifestações infantis do tipo “deixa, eu nem queria mesmo!”


Todas estas formas de expressão presentes nos memes, ditados e manifestações infantis, podem dizer de um desejo que foi muito investido, mas que, ao mesmo tempo, precisa ser negado.

Essa ideia me fez pensar nos conceitos de desejo e recalque. Sim, as definições e conceituações de uma teoria não ficam (e nem deveriam ficar) restritas aos momentos em que estamos lidando com livros, estudos e afins.


Penso que, talvez, o mais bonito de quase toda teoria, e em específico, falo aqui da Psicanálise, é que ela é viva! Experimentamos seus conceitos e definições na própria pele, nos avessos do corpo, na ponta da língua, no tamborilar dos dedos e nas mais corriqueiras formas de demonstração de insatisfação e contrariedade.


O desejo foi definido por Freud como algo que difere da necessidade. Enquanto a necessidade requer uma ação específica e encontra num objeto único e definido o meio de satisfazer-se, o conceito de desejo ganha formas mais amplas e dinâmicas, apontando suas relações com a singularidade e suas “causas” inconscientes. Remete ao movimento psíquico em direção a um objeto (situação, pessoa, algo que se espera receber...) que se supõe ser o objeto de satisfação. Nessa busca, o que se tenta recuperar é a repetição de uma suposta/hipotética experiência de satisfação, que ficou “gravada” em nosso psiquismo, pela via dos traços mnêmicos.


O desejo insiste, persiste e se repete incansavelmente. O bom é que ele varia suas formas de busca de satisfação (a não ser nos casos em que a repetição se faz de caráter mortífero). Pode se apresentar nos sintomas, lapsos de linguagem, esquecimentos, atos falhos, sonhos, pensamentos, fantasias, memes (rsrs).


Mas é espertinho o desejo. Ele não se apresenta em sua forma “pura”. Em sua negociação com a “censura”, ele sabe que, se “chegar chegando”, vai causar muito mal-estar e um certo sofrimento. Então, ele se disfarça, mimetiza, veste outras roupagens, se deforma, consegue uma certa passagem para a consciência e “tenta se contentar” com um “mas quem me dera!”


Por ser movimento, insistência, busca de satisfação, o desejo causa! E algumas vezes causa dor, vergonha, desavença, insatisfação, ressentimento, conflito. E com a mesma intensidade que ele busca se satisfazer, se depara com uma força contrária que o impede e aponta uma necessidade de defesa.


É a hora do “Deus me livre!”: não fossem os interditos, construções sociais, pactos civilizatórios... É aí que entra em cena um dos mecanismos defensivos, o recalque, possibilitando que o sujeito afaste da consciência estes desejos que lhe trazem algum prazer, mas também uma cota de sofrimento.



É nessa dinâmica que integra prazer e desprazer, desejo e conflito, satisfação e defesa, que vamos nos constituindo e tentando conciliar, minimamente, as forças que brigam dentro de nós por uma soberania. Às vezes a luta é bastante sofrida e terrivelmente árdua, saímos esfarrapados da batalha. Outras vezes, dá para compor um meme, um texto, falar em uma sessão de análise, fazer uma piada...


Quase sempre a gente faz o que pode com aquilo que tem e com os riscos que consegue correr, com as apostas que consegue fazer. Outras vezes, o que se impõe com mais força é o conflito, um “Deus me livre. Mas quem me dera!” É esse antagonismo que tentamos reconciliar. Tentamos, mas não atingimos um equilíbrio, uma justa medida, sempre fica uma falta, uma equação que não fecha, um resto. E é exatamente isso o que nos permite continuar!


Leila Veratti

Psicanalista, membro do TRIEP.


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