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E quando tudo (isso) acabar?

A notícia de que o presidente dos EUA, Joe Biden, flexibilizou o uso de máscaras ao ar livre e para os vacinados veio a mim acompanhada de imagens de parques onde pessoas tomavam sol como víamos antes da pandemia. Notícia essa que me chega enquanto tenho em mente a colocação de pacientes que dizem das dificuldades de viver sem suas “válvulas de escape”, maneira como muitos tem denominado suas relações com o tempo livre. Tempo esse com o qual muitas vezes desenvolvemos uma relação de obrigatoriedade e nos vemos nos cobrando determinadas atividades de lazer que termina nem parecendo tão livre assim. Outros expressam a ideia de que teria ficado evidente como uma rotina cada vez mais acelerada, antes da pandemia, os distanciou de qualquer reflexão sobre seus próprios estilos de vida.



A teoria freudiana nos mostra que nosso interesse pelo mundo começa cedo, o incômodo da fome faz com que aqueles que cuidam do bebê levem-no ao alimento. Junto ao momento de saciar a fome ficam registrados, na experiência de eliminar esse incômodo, outros aspectos. Um acontecimento cheio de trocas, de olhares, carinhos, irritações, falas ainda não compreendidas e sons que embalam o mamar, nos melhores casos. Um momento, aliás, já bastante marcado por mal-entendidos de ambas as partes. Mãe e bebê podem ansiar esse encontro, onde não apenas a fisiologia da fome está em jogo, mas uma relação que se inicia marcada por essa variedade de aspectos.


A investigação do mundo se forma atrelada por essas primeiras marcas de satisfação. Procura-se experimentar o mundo ainda com muitas limitações motoras, encontram-se objetos próximos, pode surgir um paninho, morde-se o chocalho, aparecem bichinhos de pelúcia. E vamos crescendo, sempre meio insatisfeitos e chorosos, mas não temos muitas opções: vamos em direção ao mundo com bastante voracidade buscando nos satisfazer e junto experimentando suas limitações.


Nos regozijamos em mostrar nossos prazeres, exibindo coisas que nos agradam. Com o tempo vamos ficando mais íntimos e animados com as palavras e os sons. Ao falar testamos seus efeitos, extraímos prazeres, risos, tentamos lidar com o sofrimento e nos esforçamos em sermos entendidos. As relações com o mundo vão se transformando. Usamos da linguagem em todas as relações, nosso próprio pensamento se organiza com ela e percebemos que seu manejo é delicado, pode causar confusões, desencontros e despertar emoções inesperadas.


A narrativa acima busca destacar como esses envolvimentos que foram motivos de grande prazer, como o brincar, ver um desenho na TV, por exemplo, se transformaram ao longo da vida em novos interesses. A dinâmica dessas transformações é marcada também por eventos menos fluidos e nos percebemos fortemente ligados a algumas experiências do passado como que congeladas no tempo. As recordações sejam em pensamentos ou na repetição de atitudes que não gostamos, vão sendo elaboradas ao longo da vida.



Pensando nesses diferentes momentos de nossas vidas e na relação com os objetos que nos trouxeram alguma satisfação, que imagino o fim da pandemia. Apesar da ânsia de voltarmos a viver como antes, esse momento não será como o início de uma primavera de contos infantis: quando enfim, certa manhã, após o rigor da natureza, a alegria se apresenta e todos começam a sair de suas casas para encontrar seus antigos prazeres. Não sairemos todos juntos por conta da vacina, cada um tem seu tempo para elaborar as perdas vividas. Vamos buscar os parques, o sol, mas já somos outros, com novas marcas. Iremos tatear o mundo novamente e aos poucos vamos nos situar. Nossos interesses foram reescritos e notaremos que as perdas deixaram suas marcas, alguns encantos se foram. Uma correria antes automática foi repensada, interesses antes escondidos na rotina reapareceram, certos valores ganharam novos significados, são os efeitos dos momentos de sofrimento intenso. Nos recolhemos forçosamente e tenho esperança de que seremos criativos quando isso acabar, afinal se pararmos para olhar nossa trajetória pessoal ela sempre foi marcada pela dinâmica de reinventar nossos interesses.


Gustavo Florêncio Fernandes

Psicanalista, membro do TRIEP








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