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Pequena mamãe

Muitas vezes é difícil para uma criança imaginar que seus pais já foram crianças também. Dependendo da idade que a criança tem, ela não consegue conceber que o adulto teve uma história que a antecedeu. E para que isso se concretize de alguma maneira, ela precisa de um bom e frutífero exercício de imaginação.



Você, por exemplo, já imaginou seus pais como crianças? Fez uma espécie de teatrinho mental de quais teriam sido suas inquietações, sofrimentos, medos, alegrias? Até onde foi sua capacidade de fantasiar?


É a este universo que a diretora Céline Sciamma nos lança em seu longa “Petite Maman” (2022 – disponível na @amazonprimevideo). Nelly, uma menina de 8 anos de idade, acaba de perder sua avó materna. Ela precisa viajar com seus pais à casa de infância da mãe, para esvaziar o lugar. As cenas iniciais, mostram Nelly acompanhando sua mãe, Marion, remexendo em objetos de sua infância, livros, cadernos, brinquedos, ao mesmo tempo em que toca lembranças tão cheias de sentido e complexidade.


Com Nelly, acompanhamos sua mãe em um doloroso e intenso processo de luto, do qual sabemos que uma de suas características se refere a uma tristeza profunda e uma quietude necessária, que envolve o sujeito numa espécie de “ensimesmamento.”


Para a elaboração psíquica deste processo, é importante que se instale um tempo no qual o sujeito possa, pouco a pouco, se despedir do objeto de sua perda, revisitando/rememorando imagens, lembranças, objetos, tudo aquilo que de alguma forma o ligava ao objeto de sua perda. E quando se estabelece esse tipo de ligação, o sujeito parece incapaz de se ligar e se interessar pelo mundo à sua volta, parece incapaz de amar. Mergulhada neste processo de luto, Marion vai embora e deixa Nelly com o pai. Como a menina irá preencher seus dias? Como vai lidar com dias que estão embebidos na perda de alguém tão amado e significativo, ao mesmo tempo em que precisa compreender a ausência de sua mãe?


Para lidar com seu próprio luto pela perda de sua avó e com a ausência de sua mãe, que Nelly vive também como um abandono, ela brinca! Busca primeiro brincadeiras que possa fazer sozinha. E como toda criança ativa, vivaz e curiosa, Nelly questiona, investiga, explora! Até que encontra uma amiga para partilhar suas brincadeiras, suas inquietações, sua insegurança e seu tempo. Curiosamente, a pequena amiga que ela encontra tem o mesmo nome de sua mãe, Marion, e a mesma idade de Nelly. E ela(s) começa(m) aqui uma viagem no dentro-fora do tempo.


Essa sobreposição das personagens e do tempo-espaço, lançam Nelly num atravessamento que ela sabe que, como em algumas brincadeiras, ela precisará fazer sozinha. Sorte a dela poder contar com a imaginação, com a fantasia, com o devaneio que a possibilitam construir uma compreensão de seus medos, inseguranças, tristezas para, a partir destas apropriações, constituir sua própria identidade.


Nelly procura saber de si através do outro. Sem rodeios, mas às voltas com grandes questionamentos de sua pequena existência, Nelly pergunta à sua mãe se ela se sente triste, pergunta ao seu pai sobre porque os adultos não falam com as crianças sobre “coisas reais”, sobre seus medos, inseguranças, tristezas. Ela tenta, por esta via, compreender e poder se apropriar de seus medos, tristezas, inseguranças. Mas se os adultos se mostram tão pouco, como ela poderia saber de si?


Da possibilidade do tédio, à capacidade de brincar sozinha e depois partir para uma brincadeira compartilhada, Nelly faz a travessia de seu luto, organiza seu mundo interno, cria suas respostas para as inquietações dos adultos e torna a realidade menos bruta.



Brincando, ela desloca para o exterior, para a experiência do brincar, seus medos, inseguranças, tristezas, frustrações, angústias, conflitos. Através da ação lúdica, ela se torna mais ativa perante estes impasses e pode, assim, fazer tentativas de dominar experiências sentidas como dolorosas, alterar situações desagradáveis, vivenciar papéis e situações que na realidade não lhe seriam possíveis. Brincando ela encontra saída para seus mais variados dramas e consegue lidar com a morte, a ausência, a separação e a passagem do tempo.


Com diálogos lindos e simples, mas profundos, o filme é um encanto! Uma viagem no tempo feita com doçura, delicadeza, profundidade e em boa companhia!



Leila Veratti

Psicanalista, membro efetivo do TRIEP leilacsantos@hotmail.com

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